Crónica #7 | A fronteira entre a descoberta sexual e a violência sexual

No ano passado a Carolina e o Daniel mudaram de escola. Tudo correu bem com a integração e não houve um único dia em que me arrependesse da decisão. Uns meses mais tarde, o Daniel a meio de uma conversa disse que o menino X tinha pedido à mana para lhe mostrar o pipi e que a mana mostrou. Lembro-me como se fosse hoje que me senti gelar da cabeça aos pés. Demorei (demorámos ambos porque a conversa foi tida na presença dos dois) a conseguir reagir, conversámos com os dois sobre o assunto, explicando que não se mostrava pipis nem pilinhas a ninguém mesmo que pedissem. A Carolina choramingou, desdramatizámos a coisa para que não se sentisse culpada, e nas semanas seguintes andámos mais atentos do que habitualmente. Falámos também com a educadora, que tal como nós, considerou que seria um processo de curiosidade associado à fase da descoberta. Ficou também alerta para o caso, e tudo passou sem que houvesse sinais de repetição. Na semana passada, tomei conhecimento de uma situação que ocorreu numa escola parecida com a que a Carolina e o Daniel frequentam, mas com uns contornos muito mais rebuscados e que na minha opinião ultrapassam a simples descoberta. Desde que soube da história que não consigo deixar de pensar nela, e expus o caso ao Hugo para que me ajudasse a saber o que fazer se isto se passasse comigo. Não deixem de ler, porque o tema é sensível e exige tratamento cuidado.
O tema de hoje é bastante sensível e desperta muitas preocupações e medos nas mães, pais e educadores. Por esse mesmo motivo, é um tema importante para se pensar, analisar e reflectir.
O caso que apresentaram ao definitivamente são dois e que originou esta crónica passou-se esta semana. Vou retratá-lo com a generalidade e confidencialidade que estes temas devem ter.
Uma menina de 5 anos contou à mãe, no meio duma conversa rotineira, que um dos meninos da sua sala do colégio lhe tinha pedido para lhe “mexer no pipi”. A mãe ficou alerta, fez um discurso sobre o tema para que a menina percebesse logo que não pode deixar que isso aconteça, e ficou com vontade de ir à escola falar com a educadora.
No dia seguinte, a mãe puxou conversa com a filha, que lhe diz que o mesmo menino lhe pediu para “chupar a pilinha”. A mãe entrou em pânico e despoletou um movimento no colégio, onde questionou as educadoras e as auxiliares, originando igualmente uma série de reuniões na escola.
No entanto, toda a gente parece desvalorizar o assunto e a mãe não sabe bem o que fazer ou dizer à filha, cuja reação ao falar do assunto é de vergonha ou contenção.
Exposto o caso, vamos então analisar e refletir sobre o mesmo.
Comecemos por analisar, desmontando o todo em partes. Vou começar pelos comportamentos-problema, e neste caso temos dois, que são duas verbalizações duma criança de 5 anos à mãe, em dias sequentes:
Verbalização 1: “mexer no pipi”
Verbalização 2: “chupar a pilinha”.
Refletindo sobre estes dois comportamentos-chave, a mãe desta menina teve a reação adequada e ajustada aos momentos.
Na primeira frase parece estarmos numa descoberta sexual natural entre crianças de 5 anos, onde o correto educativamente é enquadrar e ensinar o certo e o errado, dizendo à criança o que se pode e não se pode fazer.
Na segunda frase, no entanto, já há indícios que podem entrar no campo da violência sexual, uma vez que a frase ““chupar a pilinha” não parece ser de criação espontânea duma criança de 5 anos e levanta a hipótese da criança que a verbaliza em primeiro lugar na escola estar a ser exposta a informação sexual desadequada.
Sendo assim, como definir a fronteira entre a descoberta sexual e a violência sexual?
Como é habitual, a minha forma de ser enquanto psicólogo passa primeiro sempre por “ensinar a cozinhar” e só depois “dar receitas”. Mesmo neste tema mais sensível mantenho essa metodologia.
Por isso, primeiro deixo algumas didáticas e regras de atuação sobre o tema da pergunta levantada, antes da sua resposta direta e simples.
A primeira regra nestas situações é muito simples: avaliar com objetividade. Não criar falsos positivos nem falsos negativos, gerir as emoções e seguir os protocolos de avaliação, com a serenidade e objetividade que estas situações mais emotivas e preocupantes requerem.
A segunda regra é: qualquer pessoa consegue avaliar e intervir, dentro das suas competências. Tal como no socorrismo, por vezes ser o primeiro a chegar ao local de um acidente torna-se a pessoa mais habilitada a intervir, mesmo não sendo socorrista ou profissional de saúde, porque simplesmente está no momento e no local certo. O mesmo se passa nestas situações (onde igualmente se pode aprender noções básica de “primeiros socorros” para saber o que se deve fazer e o que não se deve fazer).
A terceira regra é: há intervenções urgentes, que precisam de rapidez, e há outras a serem tomadas com calma e tempo. A grande maioria não são urgentes. Há que ir diferenciando.
A quarta regra é: pedir ajuda. Aqui é aceitar os nossos limites no socorro e ação, e não ter qualquer problema em pedir ajuda a amigos ou especialistas, em chatear quem quer que seja, em ir e perguntar.
Temos assim 4 regras:
1. Avaliar com objetividade
2. Avaliar ou intervir dentro das minhas competências
3. Intervir de forma rápida ou tranquila, conforme a necessidade
4. Pedir ajuda
A avaliação é sempre algo muito importante e as mães e pais são altamente qualificados para tal na sua condição parental porque têm a relação afetiva com a criança, e deste modo conseguem compreendê-la e ouvi-la melhor que qualquer outra pessoa.
No entanto, essa mesma condição de mães e pais, fazem com que sintam tudo a multiplicar por mil, e que mesmo que tivessem a informação necessária para conseguirem avaliar, tendencialmente o processo cognitivo seria influenciado pelo emotivo.
Assim, nesta dupla condição das mães e pais, não deixe de avaliar e confie em si, sempre com alguma vigilância das suas emoções e possíveis híper ou hipo-reações.
Tenha sobretudo muito cuidado com a informação que recolhe e com as perguntas que faz. As crianças mais pequenas são muito sugestionáveis às perguntas e sem querer pode usar palavras nas perguntas que serão depois usadas na resposta. A criança quer sobretudo responder “corretamente” por isso pode “pegar” nas palavras da pergunta do adulto e usá-las (na sua génese primária e inconsciente, a criança quer que a mãe e pai continuem a gostar dela e por isso procura responder no sentido de deixar a mãe ou pai felizes). A criança não consegue diferenciar que desta vez, nesta conversa, usar as palavras do adulto não é sinal de crescimento e aprendizagem, que este não é um comportamento desejável como das outras vezes.
Assim, registe o que conversado num papel, com aspas e tudo, no caso de citações. Escreva na sequência do conversado e tente não fazer alterações. Registe igualmente hora e local da conversa. Não há problema nenhum nisso. Eu por hábito profissional, até nas consultas da pediatra faço registos.
Quanto à intervenção, a urgência é apenas no caso de haver algum eventual perigo e nestas situações a ação tem como objetivo principal retirar a exposição ao perigo. Atuando-se interventivamente por prevenção primária ou secundária, as ações seguintes devem ser calmas e ponderadas, para que a “cura não seja pior que o mal”.
Após este enquadramento e didáticas, vamos então responder à pergunta analisando este caso.
O primeiro comportamento verbalizado, o “mexer no pipi” é algo muito frequente nas crianças desta idade que estão a descobrir as diferenças de género. Nestas idades, o desenvolvimento sexual passa por uma natural curiosidade pelo próprio corpo e pelo corpo de outras crianças, sejam do mesmo género, sejam do género oposto (sendo maior a curiosidade pela diferença).
Nestas situações, a resposta adequada é enquadrar esta curiosidade como natural, explicando as diferenças entre os rapazes e as raparigas, usando figuras de livros para tal, por exemplo.
Depois dessa didática sobre o corpo, ensinar outra aprendizagem: a da intimidade. A intimidade sobre o próprio corpo é algo que se ensina de forma simples e afetuosa, dizendo que o nosso corpo é só nosso e que deve ser protegido porque é muito importante.
Nessa sequência surge o ensinamento do não, ou seja, que se um outro menino ou menina pedir para mexer no nosso corpo, sobretudo em partes do corpo mais intimas, que a resposta deve ser não, porque aquelas zonas do corpo fazem parte da intimidade e não se deixa mexer.
Estamos até aqui dentro da fronteira da descoberta sexual.
No segundo comportamento verbalizado, o “chupar a pilinha”, como referi anteriormente, podemos já estar a entrar na violência sexual. Vejamos porquê.
Uma frase deste género parece indicar uma aprendizagem não espontânea, por generalização de conhecimentos, mas sim por exposição a modelos de aprendizagem.
Aqui ter muito cuidado com a objetividade e não criar nem falsos positivos, nem falsos negativos. A informação é o que é, e levanta hipóteses que se testam. Esse é o procedimento protocolado. Nem mais, nem menos.
Assim, a informação-comportamento (a frase verbalizada “chupar a pilinha”) levanta a hipótese: a informação foi adquirida por exposição.
Nesta sequência de hipótese, levantam-se outras hipóteses: a exposição pode ter sido por ouvir uma criança mais velha a dizer o termo, por ouvir a frase na televisão, por ouvir algum adulto nalgum contexto dizer isso, ou, menos provável, mas possível, por ter observado o comportamento ou sido exposta a um comportamento sexual ativo (onde uma criança mais velha lhe disse para fazer essa ação).
Recordo, aqui, a regra da objetividade: avalia-se o possível e tendo em conta as probabilidades, sem confabulações nem desvalorizações.
Recordo igualmente a regra da intervenção urgente ou tranquila: neste caso se ocorreu alguma violência sexual, o objetivo é prevenir secundariamente (para que não se repita) e agir com calma e ponderação (para não tornarmos a “cura pior que o mal”).
E agora um critério de ouro para o diagnostico diferencial, porque as dúvidas podem sempre ficar a remoer a mente: alteração de comportamento. Ou seja, quando já se entra na fronteira da violência sexual a criança manifesta geralmente alterações do comportamento, isto é, muda o comportamento habitual. Esse é um indicador de sofrimento importante a ter em conta e a monitorizar.
Perante a segunda frase, a mãe da menina agiu corretamente a acionar os meios escolares, que terão o dever de avaliar e monitorizar a situação.
Em paralelo, a mãe da menina pode exigir no colégio maior vigilância e monitorização, pelo menos temporariamente, até que se esclareça e acalme a situação (a tal prevenção primária e secundária; primária no sentido de evitar escalada de comportamentos, e secundária para evitar a exposição repetida da sua filha a uma frase deste género, mesmo que dum colega da mesma idade, dando-lhe tempo a processar esta ocorrência).
Em casa, a intervenção é semelhante à anteriormente referida. Reforçar o conceito de intimidade do corpo, do não, e entrar na área de “o que fazer se alguém quiser mexer na intimidade do teu corpo ou quiser que mexas na intimidade do seu corpo?”.
Neste último ponto a regra é: “deixar a porta aberta”. O que é isto? É estimular a comunicação da criança, reforçando positivamente o contar aos pais, evitando a culpa e a vergonha, pois isso pode ser o suficiente para não contar ou contar só depois.
Não há que sentir culpa nem vergonha. Nem a criança, nem os pais, nem a escola. Estes momentos são oportunidades de aprendizagem e crescimento, de todos.
E não se esqueçam, se sentirem necessidade, da tal regra: pedir ajuda.
Bem-haja,
Hugo Santos
Psicólogo – Psicoterapeuta
www.psicologo.pt
Na semana passada falámos sobre altruísmo e como devemos ensiná-lo aos nossos filhos. Podem ler a crónica aqui.
