Geração de rua vs geração de “choninhas”

Quando era miúda, brincava na rua. A Rua da Liberdade, que ia desde a praça até ao Olival, tinha poucos carros. Se viesse de baixo, encontrava a Cooperativa, depois a padaria, e um pouco mais à frente o Adriano. Passava o largo do chafariz, onde se entrava para o centro de saúde, dizia bom dia aos velhotes que passavam os dias ali sentados nos bancos ou a jogar às cartas, e continuava a subir a rua.
À esquerda tinha a Capelista, dizia bom dia à Cristina e passava para o lado direito, onde parava na Lena Portela para dar um beijinho. A Lena tinha um encanto especial, porque era ali que todos os anos alugávamos os fatos de carnaval! feitos à mão, com toda a dedicação e de enorme qualidade. Era por isso uma loja que todos os miúdos do bairro adoravam. Subia mais uns metros e voltava para o lado esquerdo, entrava no café e dizia bom dia ao Sr. Pedro, à Flora e à filha Du. Entrava, e pedia um furo. Mais tarde, quando o meu avô lá fosse beber um café pagava. Lembro-me como se fosse hoje, dos queques de laranja que a Flora fazia. Quentinhos, acabadinhos de sair do forno, uma perdição! Saía feliz com o que quer que fosse que me saía no furo, subia mais uns metros e lá estava o Zé António e a Dona Odete. Aproveitava, para entrar e dar uma namoradela ao expositor rotativo dos doces. Mesmo que não levasse nada, sabia sempre quais eram as novidades que tinham chegado no dia. Do outro lado da rua, na porta em frente, dizia bom dia à Sra. Ana e dava um beijinho à Jacinta. A Jacinta era a enfermeira do bairro. Avó de um colega meu da escola, cheia de energia, percorria o bairro aplicando injecções, trocando pensos, medindo tensões arteriais. Toda a gente a conhecia e toda a gente a estimava.
Duas portas acima, do outro lado da rua, entrava na drogaria. Aquela mistura de cheiros, a plásticos, pregos e parafusos, diluentes e massas, ou colónia a peso. Cheiros que preencheram a minha infância e dos quais nunca me hei-de esquecer. O chão, de mosaico hidráulico [deve ser daqui que vem a minha paixão por mosaico hidráulico] em tons de vermelhos. Dava a volta ao balcão, e lá estava ele! O avô Fernando! Sempre bem disposto, sempre sorridente, sempre cheio de energia e com uma saúde de ferro. Nunca vou esquecer a imagem de o ver a descer a rua, vindo de casa, carregando garrafões de lixívia de 5 Litros, para vender na drogaria. Trazia sem qualquer dificuldade uns 5 em cada mão! Todos de uma só vez! E eu sabia que o meu avô era o mais forte do mundo! Assim que eu entrava na drogaria, muito mais baixinha do que o balcão, ele dava sempre por mim, parava de fazer o que quer que fosse e vinha ter comigo! – “Querida!” – com um sorriso rasgado, abraçava-me e enchia-me de beijos. Encostava os lábios à minha bochecha e disparava beijos em série. [Ainda hoje, com os seus 85 anos e poucas palavras, é com rajadas de beijos que reage à minha presença. Mesmo sem falar, e mesmo que no segundo seguinte volte a dormir.].
Passava tardes inteiras ali com ele. Pesava chumbinhos para a caça e embrulhava-os em cartuxos de papel manteiga. Fazia bonecos com massa de vidro. Arrumava as montras escolhendo criteriosamente onde ficavam as jarras de cemitério, as panelas de pressão, os bacios de plástico ou as cloches. Desenrolava mangueiras de vários diâmetros para logo as voltar a enrolar, organizava alguidares e regadores por cores, media fios e cabos de aço plastificados com o metro de madeira. Arrumava a prateleira dos produtos para animais: sabonete cão e gato à esquerda. pecusanol à direita. Logo ao lado, restaurador Olex, embalagem vermelha primeiro e depois a azul. Seguiam-se prateleiras de pregos e parafusos, de cabeça chata ou redonda, com várias polegadas e materiais, e as escápulas e os camarões. A lógica de arrumação do meu avô não era a mesma que a minha. Mas mesmo quando eu arrumava à minha maneira, ele não se importava nada com isso e deixava-me. Havia tardes em que já cansada das brincadeiras do costume, pegava numa espátula e removia toda a massa de vidros das montras vermelhas de ferro aos quadradinhos. Quando terminava, ia buscar massa nova, e aplicava-a de forma exemplar! Ainda hoje, se por lá passar, e apesar dos anos que já passaram, vejo massa aplicada por mim, em tardes quentes de Verão, quando já tinha esgotado todas as brincadeiras habituais.
Passava horas na rua, a jogar ao berlinde na berma da estrada, a saltar à corda, a lançar o pião ou a saltar à macaca. Não sei bem onde o guardava [provavelmente no bolso!] mas tinha sempre comigo um pau de giz. E sempre que me apetecia brincar, tirava-o do bolso e desenhava no chão! Afinal, era para isso que as estradas serviam não era?

Ontem vi uma reportagem que passou na Sic Noticias há dois dias, na Reportagem Especial, de título “As pessoas crescidas nunca percebem nada”. Esta reportagem comparou a infância de diferentes gerações, e deixou-me a pensar. A verdade é esta, pura e dura, os meus filhos não vão ter a liberdade que eu tinha, não vão brincar como eu brincava, não vão valorizar as coisas simples como eu valorizava. Estamos a criar uma geração de crianças que serão adultos menos inventivos, menos desenrascados, com muito menos autonomia.
Confesso que me aflige pensar no futuro dos meus filhos. Nas memórias que terão da sua infância, e no que esta infância moderna lhes proporciona quer agora, enquanto crianças, quer no futuro, enquanto adultos que terão uma personalidade fortemente influenciada pelas vivências da infância. Já pensaram nisso?
Os nossos filhos não saem à rua sózinhos, não vão para a escola sózinhos, não brincam na rua, não jogam às escondidas no Olival, não andam de bicicleta com os amigos, não vão buscar pão sózinhos. Não atravessam a rua sem darem a mão, nem sabem os nomes das vizinhas que moram do outro lado da rua ou dos donos das lojas de comércio tradicional ao pé de casa. Não têm as experiências que nós tivemos e vivem num mundo cheio de protecções, como que almofadados para não se magoarem.
Quero que os meus filhos sejam adultos felizes, confiantes, seguros de si mesmos, com capacidade de arregaçar as mangas e lutar pelos seus objectivos! Será que como mãe estou a preparar os meus filhos para o serem, ou estaremos a criar uma geração de “choninhas”?
2 Comments
anaraquel
não vão fazer nada disso, porque os pais não querem!
de certeza que haverá alternativas, mas todas passam por dar-lhes mais autonomia e não saberem onde estão e o que estão a fazer os seus filhos a todo o instante.
era esse grau de incerteza e de saber que às vezes só podíamos mesmo contar connosco que nos fez crescer, aprender a tomar decisões, a arriscar (ou não) um disparate mais afoito e a responsabilizar-nos por nós próprios. era na rua e a jogar que aprendíamos a gerir conflitos e a ter consciência dos outros.
hoje os miúdos mexem-se pouco, mas pior do que isso, são pouco autónomos, sem noção do perigo (ou melhor, com medo de tudo), e sem noção do outro, sem empatia pelo que o outro sente e isso para mim é mesmo o mais assustador!
Simplesmente Ana
Que delícia de texto…Obrigada pelo momento <3