Banalidades

Há um ano…

… o dia estava assim, cinzento, húmido, estranho… como a vida. Há um ano, trabalhei a manhã inteira, e depois de almoço, levei a minha mãe, contrariada, ao hospital. Há um ano, foi-lhe diagnosticado no limite do tempo possível, um hematoma subdural de tais dimensões, que para a maioria dos médicos já não era operável e não tinha qualquer solução. Há um ano, tive [tivémos] a sorte, de ser aquele o médico de serviço, e de se encontrar na sala de TAC exactamente no momento em que a minha mãe entrou. Há um ano, tive [tivémos] a sorte desse médico decidir que valia a pena tentar, que valia a pena operar, mesmo sem quaisquer garantias de que fosse possível fazer alguma coisa. Há um ano, ouvi dizer da boca do médico, que se ela tivesse tido um ataque de tosse na urgência tinha ficado logo ali. Há um ano, familiarizei-me com o CUF Descobertas de uma forma que dispensava. Há um ano, vi-me com um irmão de 4 anos baralhado e perdido, a viver connosco, sem perceber onde estava a nossa mãe e porque tinha desaparecido. Há um ano, senti pela primeira vez que podia perder a minha mãe. Há um ano, senti pela primeira vez que o meu irmão mais novo podia ter que crescer sem mãe e os meus filhos sem avó. Há um ano, senti pela primeira vez,  que a minha mãe é mortal. Como todos nós.

Há um ano, escrevi assim:
“(…) Não podia deixar que ela continuasse assim, e que teimasse que era do
cansaço e que não precisava de mais do que de descansar. (…) Na minha cabeça, já
tinha decidido que a ia levar directamente para o hospital, mas longe de
imaginar a gravidade da situação, decidi deixá-la descansar no domingo. Na segunda feira depois de almoço fui buscá-la e levei-a. Quando
percebeu que o caminho não era o da “nossa” médica, e lhe disse que não
era para lá que a levava, reclamou comigo. Percebeu pela minha resposta,
que não havia margem para discussão, e acabou por aceitar mais depressa
do que eu esperava, a minha decisão inflexível de a levar para o
hospital. Depois da entrada na urgência, de análises feitas, e de um
TAC, o prognóstico foi aquele que eu nunca esperei. Foi necessária uma
intervenção cirúrgica de risco elevado, imediatamente.

Senti-me minúscula! Gelei, uma vez, e outra e outra… a cada palavra do
neurocirurgião, sentia que me puxavam o tapete debaixo dos pés em modo
repeat. Depois de uma situação menos correcta no procedimento
administrativo do hospital (sobre a qual ainda vou escrever uma longa
reclamação à direcção), foi feito o internamento, foram feitos os exames
pré-operatórios necessários, e subimos para o bloco. Despedi-me dela e
fiquei na sala de espera da UCI. Sentia-me vazia. Impotente. O meu pai,
que entretanto tinha ido ter connosco, revelava exactamente o mesmo
sentimento no olhar. E ali ficámos. A tentar enganar o tempo, à espera
que a porta do fundo da sala se voltasse a abrir, e o doutor nos
trouxesse noticias.”

Um ano depois, a recuperação foi a melhor possível, e embora existam sombras de tudo isto, tenho uma mãe VIVA e com todas as suas faculdades! Leio muitas vezes a frase que tenho tatuada no braço, e que quando tatuei nem imaginava que viria a fazer tanto sentido tão pouco tempo depois: “Na vida tudo se resolve excepto a morte”. Foi com esta frase, que tantas e tantas vezes a minha mãe “calou” as minhas crises de adolescente. 
Um ano depois, o dia amanheceu cinzento, húmido, estranho… como que para lembrar que faz um ano que a vida decidiu dar-nos outra oportunidade, e deixar-me continuar a ter mãe.

One Comment

  • Patricia Nunes

    Como te compreendo… a minha mãe já passou por isso, este 3 vezes na fase remissiva e o desgraçado voltou, mas ela batalhou e tem ganho sempre! Vamos vivendo o dia assim, um de cada vez!
    Um beijinho para a tua mãe e para todos aqueles que lutam contra esta doença maldita!
    <3

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