
Vazios que nos ficam na alma
“Hoje acordei e a casa estava em silêncio. Espreguicei-me, olhei à volta e percebi que já estava sozinha no quarto. Saltei da cama e pus-me em pé no chão, descalça, com a camisa de dormir engelhada. Caminhei devagar até à porta entreaberta e espreitei. As portas dos outros quartos estavam abertas e não se via ninguém. Percorri o corredor enorme até chegar à porta da cozinha e espreitei.A avó estava de pé junto da bancada a aquecer leite e a torrar pão. A tia estava a passar alguma coisa a ferro junto da porta da despensa. O tio estava em pé ao pé da porta da marquise com uma taça de cornflakes na mão. Não vi os meus pais, já deviam ter saído para trabalhar. À mesa estava o Nelson também a comer cornflakes e tu com as tuas sopas de café com leite. Estavas a misturar o pão no leite com uma colher enorme e entre duas voltas com a colher viste-me ali a espreitar.
“ – Querida” – com uma musicalidade que só a tua voz tinha, chamaste-me, e com um gesto indicaste-me a tua perna para me sentar ao teu colo. Dei dois pulos e saltei para cima da tua perna. Encheste-me de beijos, como sempre fizeste, e deste-me um bocadinho das tuas sopas de café com leite na ponta da colher.
“ – Oh Fernando não dês isso à menina! Isso tem café e ela é pequenina!” – reclamou a avó sem parar o que estava a fazer. “ – Filha queres torradas? Ou cornflakes? Ou um prato de cerelac?” – Eu queria mesmo era as tuas sopas de café com leite mas tinha que me contentar com o cerelac que a avó não me deixava comer as sopas.
Enquanto comia os tios acabaram de se despachar e saíram para apanhar o barco. A casa foi ficando mais silenciosa e com toda a calma, a avó deixou a cozinha para arrumar mais tarde, levou-me para o quarto e vestiu-me para sair. Descemos a escada os três, tu foste para a drogaria, a avó seguiu comigo a pé para o Pica-Pau.”
*****
“Saí da escola, passei em casa para lanchar, deixei a mochila e desci a rua a correr para ir ter contigo. Entrei, contornei o balcão, mais alto do que eu, e do outro lado estavas tu. O rádio ligado na Renascença como sempre, ali encostado ao lado da balança e tu a escrever alguma coisa em cima do balcão. Paraste, sorriste, e pegaste-me ao colo. Deste-me os teus beijos em rajada como sempre, puseste-me no chão e perguntaste:
“ – Já lanchaste?”
Respondi-te que sim. Guardaste os papéis na gaveta, deste-me a mão e levaste-me ao café.
“ – Vamos!”
Não precisei de te perguntar onde íamos. Já sabia! Íamos ao café. Pediste um café para ti e perguntaste o que é que eu queria. Não havia furos por isso pedi um chocolate de frutas, daqueles da Regina. Gostava dos de ananás e dos de morango. Bebeste o café de uma só vez e saímos novamente de mão dada para a drogaria.
Não sendo um sítio com grandes apelos à brincadeira sempre gostei de passar ali umas horas do meu dia contigo. Brincava à minha maneira, com coisas que eu tinha à disposição e os outros meninos não. Arrumava as montras com o que eu achava ser uma estética mais apelativa do que a tua. Desenrolava mangueiras, fios e arames que tinhas em bobines para logo os voltar a enrolar de novo, mais bem enrolados, achava eu. Pesava cartuxos de papel manteiga com chumbinhos que tinhas numa tulha lá no canto, ao lado da cal e do azul de metileno (nesses não podia mexer). Fazia desenhos para ti, escrevia à minha maneira, ou fazia puzzles com sabonetes.
Cheirava a colónia a peso que vendias em frasquinhos de vidro, as bolas de
naftalina ou a cânfora em cubos que as senhoras do bairro vinham buscar para afastar as traças das gavetas e que arrumavas numa vitrine com portas de vidro naquele cantinho entre a montra e as prateleiras. Puxava o banco de madeira para junto do balcão e ficava ali, da tua altura, a ver-te trabalhar. Por cima das nossas cabeças havia como que uma segunda drogaria, latas de tinta em prateleiras altas, trinchas e pincéis, rolos e tabuleiros, baldes e alguidares. Esfregonas, vassouras, e cabos de substituição, arame e esticadores para fazer cordas da roupa e uma infinidade de outras coisas que antigamente se compravam assim, ali ao pé da porta, à unidade, a metro ou a peso, e apenas na quantidade que fazia falta.
naftalina ou a cânfora em cubos que as senhoras do bairro vinham buscar para afastar as traças das gavetas e que arrumavas numa vitrine com portas de vidro naquele cantinho entre a montra e as prateleiras. Puxava o banco de madeira para junto do balcão e ficava ali, da tua altura, a ver-te trabalhar. Por cima das nossas cabeças havia como que uma segunda drogaria, latas de tinta em prateleiras altas, trinchas e pincéis, rolos e tabuleiros, baldes e alguidares. Esfregonas, vassouras, e cabos de substituição, arame e esticadores para fazer cordas da roupa e uma infinidade de outras coisas que antigamente se compravam assim, ali ao pé da porta, à unidade, a metro ou a peso, e apenas na quantidade que fazia falta.
Chegou um senhor que queria amoníaco. Trazia um frasquinho de vidro vazio. Pesaste o frasquinho e calibraste a balança com os enormes pesos de ferro, tiraste o frasco grande do amoníaco da prateleira e disseste:
“ – Querida vai um bocadinho lá fora para o avô pesar isto que cheira muito mal”
Saí por uns minutos. Espreitei para cima para ver se já tinham chegado as andorinhas. Olhei para o lado e decidi entrar no Zé António. Tirei uma sombrinha de chocolate do expositor dos doces e disse à Dona Odete que pusesse na conta do avô. Voltei para a drogaria. O senhor já tinha saído e tu estavas a arrumar o frasco grande do amoníaco na prateleira. Cheirava mal lá dentro. “ – Aí vens tu!” – Pegaste no banco, trouxeste-o para a rua, sentaste-te e pegaste-me ao colo. Ficámos ali a ver quem passa.
*****
Vivi os primeiros anos da minha vida em casa dos meus avós maternos com os meus pais e 3 tios. Durante toda a minha infância e adolescência passei muito tempo com os meus avós. Perdi o meu avô Camilo aos 12 anos e nunca mais me esqueci desse dia. Esta segunda-feira, após chegar ao escritório, recebi a noticia de que tinha chegado a hora do meu avô Fernando. Saí a correr, conduzi até à casa dele meio anestesiada e quando cheguei dei-lhe a mão e fiquei só ali, em silêncio. Aos 87 anos o meu avô deixou-nos de forma serena após tomar um copo de leite às 7h da manhã. O que quero guardar para mim são memórias como estas, que tenho às centenas e que são muito mais ricas do que aquilo transpor para palavras. As saudades, essas, aumentam com os dias, mas a vida continua. Tem que continuar. E um dia, estaremos todos juntos outra vez.
A fotografia deste post foi tirada no Natal de 2009. Aqui ainda vendias saúde, mas não sorriste porque não gostavas de fotografias.