Tenho dificuldade em gerir os meus sentimentos a este respeito!

Esta semana, a comunicação social entrou-nos pela vida adentro, para nos pôr a par de uma situação terrivelmente delicada e assustadora, de uma mãe, que supostamente se atirou ao mar, com as duas filhas de 4 anos e 18 meses. Confesso que quando li a notícia em rodapé num telejornal, gelei, e pensei de imediato que a senhora só podia ter graves perturbações psicológicas. Não fiz questão de ver todas as notícias sobre este assunto, nem de pesquisar na comunicação online sobre o tema, mas a verdade é que em diversas situações diferentes assisti e participei em conversas sobre o que se passou. Os meus sentimentos sobre este caso, que obviamente valem o que valem, são completamente contraditórios.
A ser realmente verdade que a senhora cometeu um tentativa de suicídio para a qual decidiu arrastar as suas filhas, ou é realmente uma pessoa muito perturbada, ou o grau de desespero em que vivia era tal, que acreditou que a vida das filhas era de tal forma má, que estariam melhor mortas. Não consigo conceber que uma mãe tenha sentimentos tão negros como este, e muito menos que os consiga operacionalizar. Já pensei vezes sem conta nisto, já tentei colocar-me na situação dela.
Imaginei-me numa situação de violência doméstica [que não sei o que é], com os meus filhos a serem vítimas de abuso sexual [que também não sei o que é], numa praia, à noite, ao frio, sozinha com os meus filhos, desesperada, com muito frio. As lágrimas corriam-me pela cara abaixo, apertava os meus filhos contra mim, e pensava vezes sem conta no que tem sido a minha vida. Queria apenas desaparecer. Deixar de sofrer, deixar de sentir, deixar de encarar aquilo em que se tinha transformado a minha vida. E os meus filhos, esses, o que seria deles? Iam crescer neste registo? Iam acabar por encarar os abusos sexuais e a violência doméstica como uma coisa normal? Iam crescer e transformar-se em adultos descompensados, problemáticos. Não conseguia conceber, abandonar os meus filhos a uma realidade assim. Não conseguia conceber uma vida, em que iam sofrer tudo o que tenho sofrido, e provavelmente mais ainda. Não consegui entender, como é que cheguei a este ponto, como é que me deixei envolver numa relação assim, como é que permiti que me transformassem nesta sombra de mulher.
Nesta situação, o que me vejo a fazer, não é de todo tentar acabar com a minha vida e com a dos meus filhos. Vejo-me sim, a tentar resolver o assunto com as próprias mãos. Afinal, já tinha pedido ajuda, o caso estava “sinalizado” como dizem por aí, mas a verdade é que tudo continuava na mesma. Via-me a encontrar forças não sei onde, para me virar a ele! Quando menos esperasse, quando se aproximasse de mim, eu ia estar preparada. Vejo-me a partir-lhe um objecto pesado na cabeça para o deixar inconsciente, vejo-me a esfaqueá-lo, vejo-me a andar de carro com ele, sem as crianças, e a atirar o carro de um penhasco abaixo. Assim, libertava os meus filhos deste futuro negro que os esperava, e morria a acreditar que lhes dei uma nova oportunidade. Vão filhos! Sejam felizes! A mãe libertou-vos da vida a que vos condenou no momento em que permitiu que tudo se transformasse numa dura realidade.
Segundo notícia do Publico:
“Depois de lhe ter sido remetida a sinalização, o Ministério Público requereu, a 2 de Dezembro de 2015, a abertura de um processo judicial de promoção e de protecção a favor das duas crianças que corria termos na secção de Família e Menores da Amadora, confirmou o gabinete de imprensa da Procuradoria-Geral da República (PGR). Nas respostas enviadas ao PÚBLICO esclarece que, “na sequência de uma participação efectuada na PSP, a que foi junta uma comunicação recebida do Hospital Amadora-Sintra, foi instaurado, em finais de Novembro, um inquérito onde se investigam factos susceptíveis de integrarem os crimes de violência doméstica e de abuso sexual de crianças”. O processo “corre termos no DIAP de Lisboa-Oeste (secção de Sintra) e encontra-se em segredo de justiça”.
De que vale agora o segredo de justiça, a burocracia, a abertura de processos?
Daniel Cotrim, responsável pela área de violência doméstica da APAV- Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, disse ao Noticias ao Minuto, que “importa lembrar que não se pode ainda “falar de um crime”, para já estamos ainda na parte de “investigação”, reforça. Segundo o técnico, esta terá poderá ter sido uma forma desta mãe “reagir” aos supostos maus-tratos de que seria alvo e te-lo-á feito com base num sentimento “altruísta de as proteger [às filhas] de um mundo que é mau. Teve necessidade de as proteger, tirando-lhes a vida”. Talvez a ideia dela seria: ‘já que sofri tanto enquanto mulher vou magicamente fazer com que não passem por isto’”, diz técnico, que considera que a mulher poderá ter pensado também que desta forma as três poderiam ir “para um outro patamar, viver de uma forma tranquila”. Porém, a mãe não terá conseguido ir até ao fim com as suas intenções e acabou por sair do mar e pedir ajuda para salvar as vidas das filhas. Uma atitude “normal” dado que quem está nesta situação “tem sempre depois um momento de lucidez” em que pensa que é possível “começar tudo de novo”.
Hoje em dia, todos temos facilidade em apontar o dedo, em criticar, em muitas vezes descrever com duras palavras as atitudes das pessoas que têm pontos de vista diferentes dos nossos, opiniões diferentes das nossas e que fazem coisas que nós não faríamos. Aconteceu isto muito recentemente com a corrente de publicação de fotos com os filhos nas redes sociais, acontece com maior frequência com temas como política, futebol e outros. O respeito pela opinião e pelas decisões dos outros tem vindo a desaparecer. E isso, a mim, custa-me! Neste caso em particular, vi ondas de pessoas a insurgirem-se contra esta mãe. A dizerem que é bem feito para ela, que matou as filhas. Que merece estar presa e muito mais. Que agora é que vai ver o que é, ao viver com o peso de ter matado as duas filhas. Já alguém tentou pensar no que estará a sentir aquela mãe neste momento? Já alguém tentou imaginar [porque ninguém conseguirá nunca sequer aproximar-se realmente da realidade desta mãe] como é que ela vai sobreviver, porque viver é palavra que deixou de existir no dicionário dela, daqui para a frente?
A mim, desculpem-me, mas aflige-me! Aflige-me imaginar que alguém no seu perfeito juízo, consegue atingir um grau de desespero tal, que comete um acto atroz destes. Aflige-me ver o mundo à minha volta a apontar o dedo prontamente. Aflige-me ver que chegámos a este ponto de mesquinhez e egoísmo, em que só olhamos para o nosso umbigo!
Andava com este assunto atravessado, e sem a certeza de ser capaz de exteriorizar o que sinto a este respeito. Não o fiz da forma clara e transparente com que gostaria porque me faltam as palavras. Mas acho que consegui deitar cá para fora o que verdadeiramente me entristece. E afinal, aqui, quem fica mais penalizado, são as meninas, que tiveram a infelicidade de nascer no sítio errado, à hora errada, e que tiveram uma curta vida de sofrimento.
One Comment
Raquel Feliciano
Apraz-me dizer que, até para nascer, é preciso ter sorte.
Não digo que esta mãe tem o que merece porque não pode ser maior a dor de estar presa do que a dor de ter morto as filhas com as próprias mãos. Pergunto-me muita vez como foi capaz, é verdade. Não sei o que faria se estivesse no caso dela mas posso dizer com alguma convicção que os meus esforços seriam direcionados para acabar de vez com o responsável que me causou a mim e às minhas filhas tal sofrimento porque neste momento, a ser verdade aquilo que ela diz, acabou com a vida das filhas, em sofrimento, e eles ficaram cá para contar a história. O que mais me aflige é pensar que aquelas duas meninas foram conduzidas, pela mão, provavelmente a sorrir, pela pessoa em quem mais confiavam… e isso deixa-me de nó na garganta.