Viva o frio!
O Inverno está ai. E os parques infantis, relvados, praias e campos de jogos, cheios de gente no tempo quente, vão ficando desertos à medida que o termómetro baixa.
Os «fantasmas» do frio e vento assustam os pais, que preferem manter as crianças no «quentinho», até que o calor regresse. Passam-se assim semanas em que os escorregas e baloiços, jogos com amigos e futeboladas são substituídos por tardes em frente à televisão e ao computador ou, no pior dos cenários, por horas e horas de aborrecimento e longas saídas para centros comerciais.
Mas não há qualquer motivo para que os programas ao ar livre sejam banidos das agendas familiares até à Primavera. A Natureza é pródiga em surpresas e os mesmos cenários, bem conhecidos quando se vestem roupas leves, podem mudar radicalmente e ganhar novos atractivos. O Sol ameno acaricia a pele, as folhas caídas no chão são novos brinquedos, as corridas aquecem os corpos e até a aragem que arrepia sabe bem.
«Mas e o frio? Ir para a rua no Inverno, molhar os pés e a roupa, transpirar, é meio caminho andado para constipações…» pode estar muita gente a pensar neste momento. João Barreiros, professor da Faculdade de Motricidade Humana, tem uma resposta na ponta da língua: «Ninguém se constipou nunca por andar na rua ao frio. As crianças, e já agora os adultos, apanham resfriados porque os corpos não estão ‘ensinados’ a gerir da melhor maneira as amplitudes térmicas».
Para este especialista em motricidade, em Portugal temem-se excessivamente as baixas temperaturas e para tentar manter as crianças quentes – e livres de maleitas sazonais – cometem-se exageros que se pagam caro. «Os nossos meninos andam vestidos demais e a maior parte dos resfriados acontece, não devido ao frio exterior, mas por excesso de aquecimento e mudanças bruscas de temperatura corporal.»
Se o corpo «for deixado à vontade para perceber quantos graus estão nos vários ambientes e ao longo das estações, o metabolismo interno adapta-se e diminuem as probabilidades de acontecerem gripes e constipações». E isso consegue-se com uma boa gestão do vestuário, sistemas de climatização e antecipação das necessidades. Por exemplo, «porque razão não se vestem ou despem roupas em casa, conforme está mais ou menos frio no interior?», questiona João Barreiros.
«Os mesmos pais que não deixam as crianças brincar na rua abaixo de determinada temperatura não se incomodam minimamente que, no Verão, elas passem horas e horas sob altas temperaturas e com os corpos ao Sol, com o risco de apanharem graves insolações», diz João Barreiros acrescentando que «os portugueses lidam mal com o frio, mas conseguem ir até à inconsequência quando se trata do calor».
Será esta uma questão cultural, presente num país ensolarado e quente a maior parte do ano? «Não. Trata-se de um atraso nas políticas de educação e saúde públicas», afirma, fazendo o paralelo com outros comportamentos.
«Assim que a riqueza média aumentou em Portugal, começámos a engordar as crianças e a limitar-lhes os movimentos porque, para as famílias, um menino protegido tem de ser gordinho e quieto, porque se se mexer muito pode magoar-se…» ironiza João Barreiros, para quem pais e filhos constipam-se frequentemente porque «os organismos sabem cada vez menos como não se constipar.»
A Ucrânia é o exemplo que o docente escolhe para afastar os receios do frio. Neste país do Leste europeu «existe um sistema em que as escolas fecham apenas quando é atingida uma determinada temperatura negativa e, conforme as idades dos alunos, encerram a temperaturas diferentes. De qualquer forma, é absolutamente normal ver crianças a brincar na rua com dez ou 15 graus negativos. É uma questão de habituação.»
Helena Sacadura Botte, secretária-geral da APSI – Associação para a Promoção da Segurança Infantil, testemunhou igualmente que um clima agreste não é impeditivo de brincadeiras ao ar livre.
«Na Finlândia, em pleno círculo polar árctico, vi muitas famílias a desfrutarem de passeios e a usarem equipamentos de diversão nos parques enquanto nevava ou com montes de neve de alguns metros de altura», refere.
Deixar mexer.
Porque o frio não é, por si só, uma ameaça e porque mexer-se é preciso, João Barreiros assume-se como grande defensor das actividades ao ar livre durante os meses frios. «Mas, atenção: ir com as crianças para a rua nesta altura do ano não significa sufocá-las em camadas e camadas de roupa, que lhes tolhem os movimentos e não ensinam o metabolismo a adaptar-se à temperatura exterior».
Assim, por muito que isso arrepie pais e avós, «é importante vesti-las com menos peças, preferencialmente compostas por fibras que deixem o corpo eliminar a transpiração que vai sendo criada com a brincadeira». E se a criança pedir para despir alguma camada «é deixá-la, pois ninguém sabe melhor que ela se se sente confortável ou não».
No caso de ficar demasiadamente transpirada, molhar os pés nas poças ou apanhar uns pingos de chuva, a solução é simples: «troca-se rapidamente por roupa e calçado secos.»
Helena Botte partilha esta opinião. «As crianças devem poder correr, saltar, transpirar, pisar poças e usar equipamentos que até podem estar húmidos. Se os pais tiverem o cuidado de levar com eles uma muda de roupa e usá-la quando acharem que é importante, muito provavelmente os filhos não se constipam após uma tarde no parque.»
Não é apenas na questão do vestuário que João Barreiros e Helena Botte têm convicções próximas. Ambos defendem a necessidade dos espaços de lazer ao ar livre – sejam parques infantis estruturados de forma clássica ou cenários de horizontes mais abertos – promoverem a interacção das crianças com os seus pares, mais novos e mais velhos, e com o resto da família.
«Numa sociedade cada vez mais de filhos únicos, muitas crianças vão perdendo a capacidade de socializar, de entrar em jogos e brincadeiras, de partilhar. Um local que promova esse tipo de actividades, e que não se limite aos equipamentos ‘tradicionais’ como baloiços e escorregas, é uma boa opção», afirma o docente universitário, enquanto, por seu turno, para a dirigente da APSI «as crianças têm de gostar do local, e deve ser-lhe dada a oportunidade de o usufruírem em conjunto com outras, mas os pais também devem sentir-se confortáveis, especialmente no que diz respeito à segurança.»
Para além das preocupações térmicas, são precisamente as questões da segurança no exterior que motivam grande parte das reticências familiares, numa preocupação que não conhece estações do ano, mas que se intensifica no Outono e Inverno.
Mas há que procurar ultrapassar medos, a bem do desenvolvimento infantil. «A segurança é o resultado do processo de apropriação do que somos capazes de fazer. Quando é que um qualquer ambiente é seguro para uma criança? Quando essa criança sabe os seus limites. Como é que se chega a esse ponto? Deixando-a descobrir o que pode ou não fazer. E o que é que os adultos podem fazer nessas circunstâncias? Podem oferecer condições suficientemente protegidas inicialmente, limitando o chamado ‘dano potencial’», defende João Barreiros.
«Nós sabemos trepar às árvores, mas os nossos filhos provavelmente cairiam à primeira tentativa. E isto porque nunca os deixámos tentar», remata.
Locais amplos, com relva, canteiros, árvores, água, subidas e descidas e outras características diferenciadoras – em alternativa aos parques infantis tradicionais e quando os atractivos destes se esgotam – são, para João Barreiros, boas alternativas para as crianças «explorarem, fazerem equipas, ganharem, perderem, festejarem, chatearem-se uns com os outros e até esfolarem os joelhos e as mãos. A maior e melhor fatia da aprendizagem acontece assim, de uma forma aparentemente caótica, mas sustentada.»
Texto: Elsa Páscoa
in
Revista PAIS & FILHOS
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